O “Quarto Concílio” de Dolpopa e a Questão Yogacara-Cittamatra
Neste texto Dolpopa apresenta a visão filosófica ‘Shentong’, que contém a doutrina que tem o significado de um “Quarto Concílio”. Os três ‘Concílios” (ou Assembléias) anteriores foram os que codificaram os ensinamentos budistas. Este trabalho surgiu a partir das instruções que Dolpopa deu para seu amigo Lama Dampa, que era o diretor da escola Sakya e que foi até Jonang receber o ensinamento sobre ‘shentog’ em 1358. Após este momento o próprio Dolpopa escreveu um auto-comentário ao “Quarto Concílio”.
O “Quarto Concílio” e o “Auto-Comentário” são exposições mais sintéticas do que está desenvolvido na “Montanha do Dharma”, uma obra extensa onde Dolpopa estabelece ‘shentong’ como o centro do budismo Jonang, aquilo que ele chamou de ‘o oceano de significado definitivo’.
A filosofia budista madhyamika tradicional (com destaque a Nagarjuna e Chandrakirti) com ênfase no vazio do eu e dos fenômenos foi chamada pelos tibetanos de “Rangtong’ enquanto que a visão que aborda o ‘vazio de outro’ (a afirmação de uma Realidade Última) foi chamada de ‘Shentong’.
Dolpopa diz que o budismo rangtong é um ‘significado provisório’ e shentong é um ‘significado último’. Assim, para Dolpopa e para a escola Jonang original, essa é a filosofia que apresenta o ‘significado definitivo’, onde se indica a existência de uma verdade absoluta e eterna, o Dharmakaya real, Dharmata, a natureza-buddha além do vazio (Sunya).
E aqui é necessário realçar um ponto fundamental. A filosofia shentong desenvolvida por Dolpopa, Buston e pelos Jonang-Zhalu apresenta a existência de uma Realidade que está além da mente, da clara luz da mente. É um erro supor que a clara-luz é o que Dolpopa define como ‘shentong’. E esse erro vem sendo cometido pelos nyingmas que desde o século XIX tentam se apropriar da tradição Jonang e apresentam o seu suposto tantra dzogchen como sendo o ensinamento último . Dzogchen tem origem na fusão do ch’an chinês (inspirado na visão cittamatra) com o shamanismo bön tibetano, sendo que o seu fundamento é o tema da clara luz da mente, derivada da visão cittamatra (confundida com o budismo yogacara original). É importante perceber que os lamas que se apresentam como a ‘nova jonang’ (na Índia e nos EUA) ignoram os textos de Dolpopa e se apóiam nos textos rime-dzogchen.
Para Dolpopa afirmar ‘cittamatra’ (only mind/somente mente) não é ingressar no entendimento de shentong, que tem a verdadeira filosofia Yogacara como suporte [com o sutras Thatagatagarbha e o Uttaratantra do bodhisattva Maitreya]. E no seu “Quarto Concílio” também diz que não há filosofia madhyamika no sentido último, pois a Realidade Última é ‘vazia de Outro’. O sistema Shentong apresenta a natureza-buddha absoluta e permanente, a universal Dharmata. E indica Dolpopa que “todos os sublimes sutras do terceiro giro do Dharma e todos os tratados do bodhisattva Maitreya são shentong’.
A filosofia Yogacara original se inspira especialmente nos textos Tathagatagarbha (século III) e no Uttaratantra, onde o tema da existência da natureza-buddha é realçado. E esse budismo Yogacara tão respeitado por Dolpopa não é a apresentação ‘cittamatra’, onde se afirma que tudo é ‘apenas mente’ (only mind). Essa confusão entre yogacara e ‘cittamatra’ vem sendo cometido pela maioria dos tibetanos – ou por falta de um adequado conhecimento do budismo mahayana da Índia (já que nos seus mosteiros estudam manuais tibetanos e não os textos originais da índia) ou por uma clara intenção de confundir os ensinamentos.
Mas esse certamente não era o caso de Dolpopa e de Buston na tradição Jonang-Zhalu, pois eles tinham um reto entendimento da filosofia Yogacara. Eles haviam estudado sânscrito e organizaram um grupo de tradutores para revisarem as traduções existentes em tibetano para usarem em seus mosteiros e para incluir no cânone editado por Buston. No seu “Quarto Concílio” Dolpopa afirmou que desejava purgar o Dharma e esse trabalho precisa ser continuamente feito, pois os “vendilhões do templo” espalham os seus tentáculos em todas as direções.
Texto escrito por Alberto Brum, 2016.